sábado, 1 de setembro de 2012


O encanto do Pontal e o avanço do mar

























A história da História Cultural, segundo Peter Burke
Diogo da Silva Roiz
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de
Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, 191 p.






          O historiador francês Pierre Vilar, no início da década de 1970,escreveu um texto que se tornaria clássico, intitulado “História marxista,história em construção”, agrupado na obra coletiva organizada por PierreNora e Jacques Le Goff sob o título Fazer História, o qual inspirou o título desta resenha, uma vez que, tal como a história marxista, que nos anos1970 ainda estava em construção, a Nova História Cultural (NHC), no início do século XXI, segundo o autor do livro em análise, também estaria em processo de (re)construção. Assim, não é nenhuma surpresa constatar que um dos argumentos principais dessa obra de Peter Burke é o de que, nas últimas décadas, os estudos culturais (re)despertaram a atenção de pesquisadores em vários países.
     Nesse contexto, historiadores que privilegiavam temáticas econômicas e sociais passaram a dar maior atenção às questões culturais. O mesmo tem ocorrido com historiadores dos eventos políticos, que começam a se interessar pelo que é recentemente definido como “ cultura política”. Em meio a isso, se compreende porque, aqui e ali, intelectuais, até então herdeiros do marxismo, vêm se classificando como estudiosos da cultura e se vinculando ao que tem sido definido como a NHC.
      Esse amplo e diversificado movimento foi, para muitos, proveniente dos cismas causados pelas agitações que assinalaram o “Maio de 1968”, que na França se desdobrou, entre outras coisas, na emergência da História das Mentalidades. A partir dos anos 1980,esta área de estudos foi, por assim dizer, incorporada à NHC, um movimento que desbordou a França para afirmar-se como um conjunto de propostas, abordagens e procedimentos articulados entre a História, a Antropologia e a Crítica Literária, cujos eixos irradiadores mais significativos se localizaram também na França, na Inglaterra, na Itália, nos Estados Unidos e na Alemanha. Apesar da expansão verificada nos domínios da NHC, permanecem a pergunta básica: o que é História Cultural? O historiador inglês Peter Burke procurou justamente responder a esta pergunta, que dá título ao seu livro. Publicado originalmente em2004 na língua inglesa, ele foi dividido em seis capítulos. Neles, o autor analisa o aparecimento da História Cultural, seus problemas, suas relações com a Antropologia, aborda seus principais teóricos e conceitos fundamentais, procedimentos de pesquisa e, por fim, os desafios e perspectivas para os próximos anos.
      Como importante adendo, apresenta ainda uma lista de títulos, editados entre 1860 e 2003, que contribuem para traçar o percurso da História Cultural e entender seu desenvolvimento no tempo.
        De acordo com o autor, a  “história cultural (...) foi redescoberta nos anos 1970 (...) Desde então vem desfrutando de uma renovação, sobretudo no mundo acadêmico”. Com o propósito de explicar “não apenas a redescoberta, mas também o que é história cultural, ou melhor, o que os historiadores culturais fazem”, ele dá ênfase “às diferenças, aos debates e conflitos, mas também aos interesses e tradições compartilhados”, combinando, para isso, “duas abordagens opostas, embora complementares: uma delas interna, preocupada em resolver os sucessivos problemas no interior da disciplina, e outra externa, relacionando o que os historiadores fazem ao tempo em que vivem” (p. 7). Burke constata que houve uma redefinição nos estudos históricos enas abordagens e discussões teóricas, quando ocorreu a ascensão da História Cultural, por intermédio de uma ‘virada cultural’, na qual análises econômicas, políticas e sociais se aproximavam de termos e diagnósticos culturais. E, no limite, reavaliavam antigas questões sob novas designações , como “cultura da pobreza”, “cultura do medo”, “cultura das armas” etc. 
        Embora a pergunta sobre o que é a História Cultural tenha sido feita em 1897 por Karl Lamprecht, Burke observa que uma resposta satisfatória ainda não foi dada. Nesse caso, uma resposta ao problema colocado foi o deslocamento da atenção dos objetos para os métodos, a partir de um terreno comum: a preocupação com o simbólico e suas interpretações. Contudo, essa situação, segundo adverte o autor, tornou a História Cultural confusa, e uma alternativa seria rastrear a “história da história cultural”, que, para ele, se originou na Alemanha dos anos 1780 em diante. Antes disso, haveria mais histórias dispersas da Filosofia, da Literatura ou mesmo da pintura do que uma história cultural da humanidade propriamente dita. Daí Burke esboçar uma divisão da história da História Cultural em quatro fases: a “clássica”, a “história social da arte” iniciada nos anos 1930, o momento da descoberta da “história da cultura popular” na década de 1960 e o da NHC.
        No período clássico, estendido até 1950, encontrar-se-iam as obras de Jacob Burckhardt e Johan Huizinga. Essa fase perpassaria, e de fato coexistiria, conforme o autor, com a da “história social da arte”, na qual se situariam as obras de Max Weber, Norbert Elias, Aby Warburg, ErnstRobert Curtius, Ernst Gombrich e Erwin Panofsky. A rigor, uma virada nos estudos culturais se iniciou ainda nos anos 1930, nos Estados Unidos e na Inglaterra, vindo a se corporificar nas obras de Arnold Hauser, L. R. Leavis e Raymond Williams. Esses estudos culminaram na descoberta do povo nos anos 1960, principalmente nas obras de E. P. Thompson, Eric Hobsbawm e Christopher Hill. Dessa maneira, verifica-se que, a despeito de o autor apontar diferentes momentos no desenvolvimento da história da História Cultural, não deixa de destacar a coexistência de interesses, discussões e análises de uma fase para outra. Contudo, na sua reentrada na cena acadêmica dos anos 1970, a História Cultural permaneceu com problemas de abordagem, de fontes e de métodos. O conceito de cultura, por exemplo, continuou definido,argumenta Burke, de forma pouco operatória, e as investigações em torno da História Cultural, principalmente nos debates marxistas, ficavam, muitas vezes, como que “pairando no ar”. Um outro problema, observado pelo autor, é quanto à definição de “cultura popular” em oposição à “cultura erudita”. Tanto que, para Burke, “um dos aspectos mais característicos da prática da história cultural entre as décadas de 1960 e 1990 foi a virada em direção à antropologia” (p. 44), fundamentalmente devido aos problemas na definição do termo cultura, embora essa virada não se tenha limitado aos estudos culturais.
        De fato, “cada vez mais as questões culturais são apresentadas como explicação para mudanças no mundo político, como revoluções, formação dos Estados” (p. 47), o mesmo acontecendo nas análises de crises econômicas ou sociais. Burke salienta que, “de 30 anos para cá, ocorreu um deslocamento gradual no uso do termo pelos historiadores. Antes empregado para se referir à alta cultura, ele agora inclui também a cultura cotidiana, ou seja, costumes, valores e modos de vida. Em outras palavras, os historiadores se aproximaram da visão de cultura dos antropólogos” (p. 48). 
        Neste ponto, o autor faz referência aos antropólogos mais influentes e suas contribuições para a pesquisa histórica. Por outro lado, Burke lembra que houve, na década de 1970, o surgimento de um novo gênero histórico, a Micro-história, associada a um grupo de historiadores italianos, dentre os quais se destacam Carlo Ginzburg, Geovanni Levi e Edoardo Grendi. Ressalta que essa foi uma reação a um certo estilo de História Social, indo ao encontro da Antropologia e exprimindo a crescente desilusão com a “grande narrativa”.
       Paralelamente, o autor aborda outras temáticas importantes como as colocadas pelo pós-colonialismo — que encontraram especial ressonância na produção de Edward Said —, e pelo feminismo, destacando-se, aqui, as análises de Michelle Perrot e Georges Duby. Em ambos os casos, frise-se, as questões se centravam na luta pela independência, fosse ela cultural ou de gênero. Burke prossegue sua argumentação, perguntando se a NHC estabeleceria um “novo” paradigma. Afirma, então, que a “palavra ‘cultural’ distingue-a da história intelectual, sugerindo uma ênfase em mentalidades, suposições e sentimentos e não em idéias ou sistemas de pensamento” (p. 69). 
     Os principais teóricos dessa linha investigativa como sugere o autor, seriam Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu: “juntos, esses quatro teóricos levaram os historiadores culturais a se preocuparem com as representações e as práticas, os dois aspectos característicos da NHC, segundo um de seus líderes, Roger Chartier” (p. 78). Depois de se debruçar mais atentamente sobre o papel desempenhado por esses historiadores, o autor conclui que “aconteceu um deslocamento ou uma virada coletiva na teoria e na prática da história cultural. (...) uma mudança de ênfase, mais que a ascensão de alguma coisa nova, uma reforma da tradição, mais que uma revolução, mas, afinal, a maior parte das inovações culturais acontecem dessa maneira” (p. 98). 
         Não foi por acaso que, em muitos casos, da ideia de representação passou-se a dar maior atenção à de construção, seja da realidade cotidiana ou das manifestações artísticas e simbólicas como a pátria e a nação. Burke destaca que as idéias de  performance e desconstrução foram importantes nessa redefinição de interesses e abordagens nas pesquisas. Todavia, no seu entender, embora os estudos culturais tenham sido de grande valia para se reavaliar as ações e as atitudes dos homens e das sociedades no tempo, a expressão Nova História Cultural, que apareceu nos anos 1980, começa a demonstrar sinais de esgotamento. Para o autor, poder-se-ia pensar três cenários alternativos: um “’retorno a Burckhardt’, “usando o nome como uma espécie de síntese, um símbolo para o renascer da história cultural tradicional”; outro seria “a expansão contínua da nova história cultural para outros domínios”; e, por fim, “a reação contra a redução construtivista da sociedade em termos de cultura, o que pode ser chamado de ‘a vingança da história social’” (p. 132). 
             De leitura fluente e agradável, o livro de Peter Burke nos oferece um abrangente painel do desenvolvimento da história da História Cultural (seja como for, ainda em construção). No entanto, o leitor pode chegar ao final da obra com a pergunta: será possível definir todo o agir humano em termos de ações culturais? Por outro lado, vale sublinhar que, se de fato muitos intelectuais que se diziam herdeiros diretos do marxismo hoje se classificam como historiadores culturais, muitos outros historiadores permanece(ra)m fiéis às suas posições originais. Tal foi o caso de Ernest Labrousse, François Furet e Pierre Vilar, na França, de Ellen M. Wood, nos Estados Unidos, ou ainda de E. P. Thompson, Raymond Williams, Christopher Hill, Eric J. Hobsbawm e Perry Anderson. Estes últimos, historiadores marxistas ingleses dissidentes do Partido Comunista nos anos 1950, à época das revelações das atrocidades cometidas por Stalin, nem por isso romperam com seus ideais. Mantiveram-se criativos ao tentarem uma síntese (se é que isso é possível) entre os modelos clássicos de interpretação e transformação das sociedades e os ‘novos’ modelos, associados à NHC (nesse particular, destaquem-se Carlo Ginzburg, Terry Eagleton ou mesmo Cornélius Castoriadis, François Dosse e Michel Vovelle).
       Além do mais, se, aparentemente, a NHC ocupa parte ponderável dos estudos e pesquisas hoje desenvolvidos nas universidades, no campo da História, os novos influxos da produção historiográfica não se limitaram a ela. Não se pode ignorar que a História Econômica tem sido revista e renovada em muitos países, do mesmo modo como a História Política e a História das Idéias passam por transformações Isso tudo acena para a possibilidade, quem sabe, de diálogos frutíferos entre essas subáreas do conhecimento, sem que tal aproximação deva conduzir ao escamoteamento de suas divergências.
Resenha recebida em abril de 2007. Aprovada em novembro de 2007.